segunda-feira, 26 de maio de 2008

Favela

Favela

Sem camisas e descalços atravessávamos aquele vale, verdinho sob o sol quente, quando ainda não existiam os becos e vielas atuais. Correndo para o mergulho na Lagoa do Barro Branco, flutuávamos sobre cobras, lagartos e flores que queriam durar para sempre, mas não duraram, pois a cidade debruçou seu véu cinza sobre a brisa suave da infância, criando um outro mundo, onde hoje tantas vidas se encontram, se digladiam, se encoitam ou suavemente se beijam, pois ali também é possível o amor. Sobre inclinações improváveis, esgotos lamentáveis e ratos quase domesticados eles construíram seus cantinhos de privacidade mínima onde resistem às provações dos governos e dos tantos deuses que povoam seus corações. Projetam um futuro improvável nos filhos que nascem todos os dias, mas o mal, a violência e a perdição estão cada vez mais próximos de seus portões e tantas vezes nem respeitam esse limite, invadem seus lares, pois há sim os que querem socializar o inferno.

Tá lá o corpo estendido no chão do barraco, tiros, facadas e um prego enfiado na testa. Há uma mina dágua sob a bananeira que resiste e refresca quem passa pelo beco sufocante. Dois livros servem para o menino agredir violentamente a menina, que chora, mas não se abala, continua sendo forte e convicta em sua honestidade. Desafia o mal pra uma peleja e vence. Há o sorriso infinito das crianças e jovens em todos os becos. O menino sem maldades é assassinado por motivos fúteis, a comunidade o vinga imediatamente e no dia seguinte temos duas famílias no cemitério, uma do lado da outra, enterrando seus jovens filhos. O marido das cinco mulheres e pai de dezoito filhos morreu assassinado ali em cima sem saber que uma das filhas havia escrito uma redação de duas páginas sem um único erro de português. A maior artista da favela, menina de doze anos que toca flauta, tambores, abes, canta, dança, sorri e faz denguinho está trabalhando de babá.

A favela é cultural, tem rádio barracão, maracatu, arlequins e flautins pelos becos e vielas, tem samba circo teatro e cinema no campinho, tem grafite jazz e rap, tem áfrica angola e moçambique, tem carnaval vem cáprarua, tem crianças tocando trenzinho caipira em seus quintaizinhos, tem jovens entrevistando moradores, fazendo um filme, tem brincadeiras, tem uma árvore sendo plantada, tem morte e vida severina e um menino armado ali na esquina.

Roberto QT

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